Por Inês Granja

Pexels
A liberdade de expressão é um direito humano, como o direito à liberdade religiosa ou o direito à não discriminação, pelo que encontra proteção em normas jurídicas de diferentes níveis, desde logo, no artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. A liberdade de expressão encontra-se consagrada também na Constituição, no n.º 1 do art.º 37.º, entre os direitos fundamentais.
Esta liberdade consiste na faculdade de exprimir e divulgar livremente o pensamento, sem impedimentos e discriminações; salvaguarda a tradução do pensamento na palavra falada ou escrita, na imagem, pelo som ou por qualquer outro meio.
Mas, como os demais direitos, esta tem limites, nem sempre fáceis de delimitar. A dignidade humana e a igualdade, à semelhança da liberdade, da tolerância ou da não discriminação, são valores nucleares da ideia de Direitos Humanos. Mas o equilíbrio difícil entre direitos pode exigir que, em concreto, sejam feitas cedências, quando um direito colida com outros direitos ou interesses do mesmo valor. Este balanço está previsto no n.º 2 do art.º 18.º da Constituição.
Os limites ao direito à liberdade de expressão são traçados, desde logo, pela afronta a princípios como a dignidade humana. Os tribunais nacionais têm referido que o ódio, a intolerância e os preconceitos não cabem no direito à crítica. A legislação portuguesa não contempla uma definição jurídica precisa de crimes de ódio, mas o Código Penal na alínea a) do n.º 1 do artigo 240.º proíbe o incitamento ao ódio através de discursos xenófobos ou discriminatórios, penaliza a discriminação e o incitamento ao ódio e à violência, prevendo pena de prisão, numa moldura penal de 6 meses a 5 anos.
Este tipo de comunicação não pode estar protegido pela liberdade de expressão. Como desenvolveu o Tribunal da Relação de Lisboa a este respeito «sempre que uma determinada conduta – seja a manifestação de uma opinião, seja a adoção de atos ou de comportamentos – vise unicamente exprimir ofensa, humilhação, discriminar ou estigmatizar pessoas ou certos grupos de indivíduos, deve entender-se que a sua admissibilidade é proibida e punida, não sendo reconduzível ao exercício da liberdade de expressão» (Proc. 5551/19.0T9LSB.L1-5, 06-07-2021).
Os crimes de ódio podem ser ligados a múltiplos fatores ou caraterísticas, e as manifestações dos crimes têm, por regra, um impacto significativo na vida das vítimas. O ódio implica viés, preconceito, desprezo. Os fatores incluem, mas não estão limitados, aos seguintes: “raça”, cor, língua, religião, nacionalidade ou origem étnica, idade, deficiência, sexo, género, orientação sexual, identidade de género e expressão e caraterísticas sexuais. Note-se que, no homicídio ou na ofensa à integridade física, os crimes tornam-se qualificados quando baseados em ódio racial, religioso ou político, por exemplo.
Diferentes órgãos do Conselho da Europa produziram documentos instrutivos acerca dos standards neste domínio e produziram recomendações. Por todos, veja-se um dos mais recentes, a CM/Rec (2022) 16 sobre Combate ao Discurso de Ódio, adotado pelo Comité de Ministros, a 20 de maio de 2022, onde se encontram recomendações no sentido de prevenir o discurso de ódio, para além de o combater, online e offline.
A necessidade de intervenção a montante e a jusante fica evidente na pirâmide do ódio, que nos mostra como os estereótipos conduzem ao preconceito, à discriminação, ao discurso de ódio e aos crimes e agressões e que, quanto mais precocemente agirmos, menor será a escalada do ódio da base (estereótipos negativos, deturpações, insultos, hostilidade) ao topo (crimes de ódio).

Pirâmide do ódio Amnistia Internacional Portugal
As Cidades desempenham um papel essencial na proteção da liberdade de expressão como um dos pilares de uma sociedade democrática e pluralista. Primeiro, as Cidades podem implementar e promover narrativas alternativas, isto é, narrativas positivas, pluralistas ou progressistas baseadas nos princípios interculturais e no respeito pelos direitos humanos. Segundo, as Cidades podem contribuir para alterar as mentalidades, as atitudes e os comportamentos face a pessoas migrantes por parte das comunidades de acolhimento, e vice-versa. Partindo da ideia de que a disseminação de estereótipos e preconceitos através de rumores pode ter impacto na forma como nos relacionamos, as Cidades podem atuar no sentido de contrariar os preconceitos e os rumores relacionados com a diversidade que dificultam a interação positiva e lançam as bases de atitudes discriminatórias e racistas.
Em Portugal, com os Projetos Policy Lab, Influencers para a Inclusão e NET IDEA as Cidades da RPCI têm trabalhado juntas nestes domínios. Os resultados destes projetos estão disponíveis na seção ferramentas deste site:
- Entre 2022 e 2024, as Cidades de Braga, Santa Maria da Feira e Vila Verde integraram o Projeto NET-IDEA (Network of European Towns for Interculturalism, Diversity, Equality & Anti-Discrimination), que teve a coordenação da Rede Italiana de Cidades Interculturais e contou com financiamento do programa CERV, da Comissão Europeia. Neste projeto internacional, que promoveu a cooperação entre autarquias, organizações da sociedade civil e grupos de jovens para projetar e divulgar novas narrativas para combater a discriminação e o racismo, foram desenvolvidos produtos de formação sobre Competências Interculturais, ao mesmo tempo que foi incentivada a reflexão e o debate entre jovens nestes temas (vejam aqui a Campanha Europeia de Sensibilização Be Everything Belong).
- Em 2021, a RPCI coordenou o projeto Inclusion Influencers, que contou com o financiamento anual do Programa Cidades Interculturais, do Conselho da Europa. A ideia do projeto partiu das Cidades da RPCI preocupadas com os crescentes comportamentos discriminatórios, sobretudo entre os mais jovens. Com este projeto, as Cidades procuraram criar ferramentas destinadas a profissionais da educação e agentes municipais, que desconstroem e desmistificam ideias feitas acerca das pessoas migrantes em Portugal; criar conteúdos online dirigidos a crianças e jovens, que se mostrassem alternativas positivas aos que tantas vezes motivam o ódio nas redes sociais, e, por conseguinte, desenvolver o espírito crítico e empatia. Este trabalho contou com a experiência e envolvimento de três influencers e, entre os recursos produzidos, encontra.se um vídeo de culinária intercultural, com um chef e influencer de cozinha, publicado pelo próprio nas suas redes sociais, um guia prático para profissionais de educação, em português e em inglês, e duas Bandas Desenhadas, com conteúdos antirrumores (BD 1; BD 2)
- Em 2018, motivada pela constatação da distância existente entre a lei e a prática, RPCI implementou o projeto Policy Lab, que teve como objetivo promover o debate em torno da aplicação da legislação existente em matéria de migração entre os decisores políticos, o governo e as cidades. Com este projeto, entre outras atividades, a RPCI produziu um conjunto de Recomendações, que foram entregues ao representante do ACM (agora AIMA) e realizou a divulgação e a tradução de materiais e metodologias que podem ser utilizados para promover a inclusão nos serviços públicos, nomeadamente do Guia Antirrumores, um manual acerca da metodologia de combate à desinformação publicado pelo Conselho da Europa. Com esta metodologia, o Programa das Cidades Interculturais do Conselho da Europa tem como objetivo o desenvolvimento de políticas públicas que promovam a (1) identificação dos principais rumores existentes numa cidade; (2) a recolha de dados objetivos e também de argumentos emocionais para desmontar os falsos rumores; criação de uma rede anti-rumores de actores locais da sociedade civil; (3) a capacitação e a formação de “agentes anti-rumores”; (4) e a conceção e a implementação de campanhas anti-rumores para aumentar a sensibilização, nomeadamente através da criação e da divulgação de novas ferramentas e recursos.
Outras Cidades que integram o Programa de Cidades Interculturais, do Conselho da Europa, reúnem bons exemplos que interessa partilhar aqui, nomeadamente:
- Bilbao (Espanha), que desenvolveu em 2014 um jogo de sensibilização para os rumores e estereótipos que afetam negativamente a convivência na cidade, destinado a testar os conhecimentos sobre a migração e os rumores que a rodeiam e a promover o pensamento crítico, sob a forma de uma raspadinha e de uma aplicação (para mais infos aqui). No mesmo ano, Bilbao implementou um concurso anual de escrita anti-rumores, que procura uma história que promova a coexistência na diversidade, que contribua para mudar as percepções negativas sobre os migrantes e que ofereça uma nova perspetiva. Incentiva a criação de novas representações e novas narrativas no imaginário pessoal e coletivo (mais infos aqui).
- Botkyrka (Suécia, que desde 2016 conta com os Cafés Anti-Rumores, realizados pela agência de impacto ambiental e social The Good Tribe para o município de Botkyrka. Com este projeto, são instalados cafés em bibliotecas como plataforma pública para explorar rumores e preconceitos com jovens dos 18 aos 25 anos, incentivando os participantes ao pensamento crítico e ao debate como forma de enfrentar os boatos e os preconceitos (mais infos aqui).
- Genebra (Suíça), que em 2018 dedicou a sua Semana Anti-Racismo às palavras que magoam (“Hurtful Words”): nesta Semana, a Cidade envolveu todos os bairros e usou a poesia, a narração de histórias, o cinema, workshops e palestras para identificar, desconstruir e condenar aquelas palavras, e gerar uma comunicação positiva e promotora da diversidade (mais infos aqui).
Para saber como avançar neste campo, deixamos abaixo várias sugestões de recursos e leituras:
O Conselho da Europa, em parceria com várias entidades, tem vindo a desenvolver diversos recursos em português que podem ser úteis para trabalhar na prevenção e combate ao discurso de ódio:
- Referências: Manual para o combate contra o discurso de ódio online através da Educação para os Direitos Humanos (em português)
- Guia dos direitos humanos para os Utilizadores da internet
- ALTERNATIVAS Agir contra o discurso de ódio através de contranarrativas
- Site do movimento “òdio Não”
A Casa do Brasil, sediada em Lisboa, tem vindo a fazer um muito importante trabalho a este nível, através do projeto MigraMyths, onde várias campanhas de comunicação ajudam a desconstruir mitos e a criar novas narrativas sobre migrações.
Imagens: facebook Casa do Brasil Lisboa, projeto Migra Myths
Ainda ao nível nacional, outras entidades, têm desenvolvido recursos úteis, como a APAV:
- Manual “ódio Nunca Mais: apoio a vítimas de ódio”
- Brochura “Discurso de ódio”
- Vídeo da campanha “a violência online é real”
E as redes sociais do Observatório das Migrações (AIMA), que têm vindo a compilar informação estatística em pequenos e fáceis de ler infográficos com o intuito de desmistificar e combater a desinformação.
Imagem: facebook Observatório das migrações
A RPCI dispõe de serviços de consultoria e formação para uma comunicação inclusiva.
Entre em contato connosco!
