Por: João Miguel Almeida
O golpe de Estado iniciado pelo Movimento de Forças Armadas a 25 de abril de 1974 mobilizou um amplo apoio popular e desencadeou um processo revolucionário fundador do atual Estado de Direito democrático.
Revolução do 25 de abril
«Está na hora! Está na hora!» Foi com este grito que os populares reunidos no largo do Carmo, misturados com os soldados do Movimento das Forças Armadas (MFA) exigiram a rendição da mais longa ditadura da Europa. Um novo tempo começava, o da liberdade conquistada nas ruas de Lisboa por umas forças armadas tão fortes que não precisaram de disparar, contra um poder tão fraco que disparou contra civis, pela mão de pides, na rua António Maria Cardoso, sede da polícia política.
Na origem mais próxima do movimento revolucionário estava uma guerra colonial que durava há treze anos e que bloqueara as esperanças na «primavera marcelista» florescentes em 1969, com a chegada de Marcello Caetano a presidente do conselho. Não era possível «liberalizar» numa guerra que ceifava vidas e todas as liberdades que hoje consideramos essenciais: liberdade de reunião, de expressão, de organização política. A negação de algumas liberdades não estavam diretamente relacionada com a guerra, mas com um regime intrinsecamente desconfiado de qualquer liberdade, instintivamente vigilante de todas as liberdades. As mulheres casadas não podiam sair do país sem autorização do marido, por exemplo.
O Movimento das Forças Armadas saiu à rua com a intenção de pôr fim a uma guerra colonial e a uma ditadura. Objetivos partilhados pelos civis que os militares mobilizaram, cada um imaginando de modo diverso qual seria a cor da liberdade. A adesão espontânea de civis de muitas proveniências ao movimento revolucionário e a explosão de associações e organizações colocou na ordem do dia muitas exigências que inicialmente não estavam previstas, como o desmantelamento total e imediato da polícia política, ou a conquista de direitos para as mulheres.
O programa do Movimento das Forças Armadas estava sintetizado nos chamados «três D»: Descolonizar, Democratizar, Desenvolver. Os revolucionários consideravam que sem descolonização não seria possível a democracia e sem democracia não seria possível desenvolvimento.
A descolonização mental
Feita a descolonização política, falta descolonizar as mentes libertando-as do racismo herdado de um passado colonial, o mais longo da Europa. O caráter tardio do colonialismo português tornou-o particularmente insidioso. Varreu da memória coletiva palavras como colónias, próprias da década de 1930, quando Hitler e Mussolini estavam no poder. Após a derrota das potências do eixo na Segunda Grande Guerra, o Estado Novo passou a designar os territórios africanos sob a sua soberania como «províncias ultramarinas». Adotou como ideologia justificadora desta dimensão ultramarina o luso-tropicalismo de Gilberto Freire, que idealizava a miscigenação de raças vista como degeneração no início da ditadura e tomava esta idealização como uma descrição da realidade. Esta ideologia negacionista das discriminações sociais, raciais e de género na relação com os africanos, valorizava a reprodução entre brancos e negras, ignorando o anátema persistente relativo à reprodução entre negros e brancas.
A nossa herança de um racismo que não se assume, que se afirma negando-se, é uma pesada herança porque torna invisível a discriminação. Eduardo Lourenço disse, provocadoramente do Estado Novo «o fascismo nunca existiu». Também no Estado Novo «o racismo nunca existiu», «a discriminação sexual nunca existiu», «a violência doméstica nunca existiu». No Estado Novo, o regime mais policial e securitário que Portugal teve, «a violência nunca existiu». Era um regime em que não havia suicídios – na imprensa, pois a censura «apagava-os».
Atualmente temos a impressão de que vivemos numa sociedade com demasiados problemas, mas essa sensação provém do próprio exercício da liberdade. Também podemos ter uma falsa sensação de segurança, de que a democracia foi instaurada de uma vez para sempre, há muitos anos. Mas a História é tecida de avanços e retrocessos. Não podemos dar como adquirida a democracia conquistada no decurso do processo revolucionário, nem pretender que o nosso regime democrático é o melhor possível.
Comemorar o 25 de abril hoje e amanhã não pode ser apenas lembrar as origens do Estado direito democrático em que vivemos, dando essa situação como adquirida. Celebrar o 25 de abril implica perceber o caminho percorrido até aqui e o que falta percorrer. Implica também encontrar respostas, no espírito de abril, para problemas que mal existiam em 1974. Nos últimos anos da ditadura, Portugal era um país de emigrantes, quer por razões económicas, quer de jovens em fuga do serviço de militar. Hoje Portugal é um país de emigrantes e imigrantes. Será preciso criar e garantir o exercício de direitos dos que escolheram viver na sociedade portuguesa para sermos fiéis ao espírito de fraternidade cantado por Zeca Afonso, uma das vozes da revolução.
O recomeço da História
É cada vez mais óbvia a crise do modelo demoliberal, que no final do século XX alguns identificaram apressadamente com o «fim da História». Instaurada a democracia, é preciso aproximar os eleitos dos eleitores e abrir caminho a uma maior participação cívica de todos, eliminando os obstáculos gerados por preconceitos raciais, de género, ou quaisquer outros. Integrada a sociedade portuguesa na economia europeia, temos de assegurar que a riqueza não seja repartida de forma extremamente desigual alimentando injustiças e discriminações.
No atual contexto de crise é cada vez mais tentadora a idealização ilusória de um passado seguro e de ordem, em que o lugar de cada um estava assegurado e deitar fora o bebé da democracia – porque Portugal ainda é uma democracia recente – com a água suja – a corrupção, a desinformação, a precarização das condições laborais, etc.
É preciso ancorar na memória uma intervenção cívica em defesa da diversidade e da inclusão e encarar o 25 de abril não só como uma data histórica, também como um dia que nos interpela hoje e amanhã.