Por: Danielle Menezes
Embora a retirada das tropas militares estadunidenses que ocupavam o Afeganistão há quase 20 anos estivesse acontecendo desde o início de 2021, foi no dia 15 de agosto, com a chegada do grupo rebelde extremista Talibã em Cabul, capital do país, que a situação tomou o seu episódio mais dramático.

As imagens de milhares de cidadãos afegãos desesperados tentando fugir do país, alguns chegando até a se pendurar em aviões norte-americanos, chocou o mundo e gerou diversas críticas ao governo de Joe Biden.
Para entender um pouco mais sobre a situação no país e suas implicações na geopolítica mundial, a RPCI conversou com alguns profissionais que acompanham o assunto e preparou este texto para você. Confira!
Um pouco de história sobre o Afeganistão
Em razão dos longos anos de conflito e da propaganda ocidental, o Afeganistão é frequentemente associado com grupos terroristas e visto como um país pobre e não muito importante. No entanto, o que muitos ignoram, é que justamente a sua localização estratégica e as riquezas naturais é que tornam este país um dos pontos mais importantes do globo. O Afeganistão está posicionado na Ásia Central, ligando o planalto iraniano a sudoeste, o subcontinente ao sul, o Himalaia ao sudeste, as planícies da Ásia Central ao norte e os desertos chineses ao leste.
O país faz fronteira com potências como a China e a Rússia e não à toa, recebeu dos historiadores o apelido de “cemitério de impérios”. Alexandre “O Grande” invadiu o Afeganistão em 330 a.C tendo supostamente dito que a região era “fácil de entrar, mas difícil de conseguir sair”, devido a resistência local e a geografia do país, marcada por montanhas e a falta de acesso ao mar.
Exploradores como, os persas, macedônios, turcos e mongóis ocuparam trechos nos mais variados períodos. Os árabes também povoaram a região e foram responsáveis pelo estabelecimento da religião islâmica, que atualmente é professada por cerca de 90% da população. No século XIX, russos e britânicos lutaram pelo controle da região resultando na vitória dos ingleses, que tomaram Cabul pela primeira vez, em 1839. Três anos depois, foram expulsos pelas tribos afegãs e retornaram em 1880, só deixando o país em 1919, quando os afegãos conquistaram a sua independência.
Uma história marcada por golpes de estado
Desde a independência, a história afegã é marcada por conflitos internos que alcançaram proporções gigantescas devido a interferência externa. Amanullah Khan, primeiro governante após a independência do Afeganistão, foi deposto em 1929 por tentar introduzir reformas sociais, como a proibição de ensino religioso nas escolas e a não obrigação do uso do véu pelas mulheres. Daí em diante, o que vemos é uma sucessão de troca de poderes, todas em decorrência de golpes de estado.
Em 1933, Zahir Shah torna-se rei e dá-se início a um período de quatro décadas em que o Afeganistão é comandado por uma monarquia. Já em 1973, o general Mohammed Daud, dá um novo golpe de estado com o objetivo de instaurar a República e assumir a presidência do país, o que acaba por desagradar o Partido Democrático do Povo Afegão (PDPA).
União Soviética e Afeganistão
O Afeganistão e a União Soviética foram grandes parceiros durante boa parte do século XX. A URSS fornecia ajuda humanitária, treinamento militar e desenvolvimento na infraestrutura. No entanto, o relacionamento ficou abalado após a ascensão de Daud ao poder em 1973. A saída encontrada para restabelecer a confiança foi a organização de um novo golpe, que ficou conhecido como a Revolução de Saur e teve início em abril de 1978, e culminou no assassinato de Daud Khan. Em seguida, Nur Muhammad Taraki assumiu a presidência do país.
O objetivo do novo governo era a implementação de uma agenda comunista que tinha medidas como, a reforma agrária, o ensino laico, a entrada de mulheres nos quadros políticos do Afeganistão e que apesar de contar com bastante apoio dos moradores de Cabul, era bastante rechaçada pelos grandes proprietários e grupos de conservadores localizados no interior do país que viam nas medidas em curso uma ameaça ao islamismo.
A insatisfação cresceu, ganhou forma e tornou-se uma rebelião, tais grupos pegaram em armas e ficaram conhecidos como Mujahidin que em árabe significa “combatente”, passando a atacar o governo de Taraki, o que acabou por criar uma instabilidade interna e dar espaço para a organização de um novo golpe ( o terceiro, só na década de 1970), agora capitaneado por Hafizullah Amin, que se torna o novo presidente do Afeganistão, mas entra em desgaste com o seu maior aliado, a União Soviética, principalmente pela sua aproximação com os Estados Unidos, o maior inimigo da URSS.
Guerra Afegã Soviética
Não há consenso entre os historiadores sobre as reais motivações da União Soviética para a invasão do território afegão. Alguns acreditam que a destituição de Hafizullah era o único motivo, já outros estudiosos defendem a ideia de que o combate aos Mujahidin também era um dos interesses. O fato é que no dia 24 de dezembro de 1979, a URSS invadiu o Afeganistão inicialmente com 8.500 soldados. Amin foi destituído e executado dias depois, levando Babrak Karmal ao poder.
Com a invasão soviética, os Mujahidin declararam guerra santa (jihad) contra os soviéticos e contaram com o apoio dos Estados Unidos no fornecimento de armas e treinamentos militares, estendendo a batalha por dez anos, no que ficou conhecido como “Vietnã do Afeganistão”. Mas os norte-americanos não foram os únicos a financiarem os grupos de rebeldes… Também países como o Reino Unido, o Irã, a Arábia Saudita e para espanto de muitos, a própria China apoiaram os rebeldes.
A guerra afegã soviética era extremamente impopular na União Soviética, além de muito custosa. Logo, a partir de 1985, a URSS começou a organizar a retirada de suas tropas do solo afegão, o que ocorreu por completo em 15 de fevereiro de 1989, no entanto, os soviéticos seguiram oferecendo apoio financeiro ao governo do Afeganistão até janeiro de 1992.
Para a União Soviética a guerra foi um grande fracasso, tendo em vista que além de não terem conseguido derrotar os Mujahidin, causou um grande impacto sobre a sua economia. Os altos gastos causados pelo conflito estão diretamente ligados à forte crise econômica do final da década de 80 que culminou no colapso do bloco.
Dos Mujahidin ao Talibã
As consequências da guerra para o Afeganistão também foram gravíssimas. Estima-se que durante os 10 anos de conflito cerca de 1 milhão de pessoas morreram. Além disso, houve o fortalecimento dos rebeldes islâmicos, sobretudo por causa do financiamento internacional. Com o fim da guerra com os soviéticos, eles passaram a lutar entre si pelo domínio do país e se tornaram dois grandes grupos mundialmente conhecidos: Al-Qaeda e o Talibã.
Patrícia Grazziotin Noschang, professora da Faculdade de Direito da Universidade Passo Fundo no sul do Brasil, Doutora em Direito e Mestre em Direito e Relações Internacionais, nos conta que o Talibã foi criado em 1994 por um pequeno grupo que realizava seus estudos em escolas islâmicas tradicionais no Paquistão. Não por acaso, Talibã significa em pashto, idioma dos afegãos na região de Pashtun – leste e sul do Afeganistão, “estudante”.
Este grupo assumiu o poder do país em 1996 e instituiu a Lei Islâmica, conhecida como “Sharia”, fazendo uso de interpretações bastante fundamentalistas. As mulheres, portanto, estavam proibidas de frequentar as escolas, trabalhar fora de casa, viajar sozinhas, ou saírem sem o véu.
Apenas a Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e o Paquistão davam apoio oficial ao Talibã, todos os outros países do planeta o reconheciam como um governo terrorista. Em 1997, Mohammed Omar, o então líder do país, estabeleceu uma aliança com Osama Bin Laden, fundador da Al-Qaeda.
De aliados para inimigos: A guerra americana no Afeganistão
Após o ataque às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush deu início a chamada “Guerra ao Terror” contra a Al Qaeda, conhecido por ter sido o mandante dos ataques e contra o Iraque de Saddam Hussein.
De acordo com Patrícia Grazziotin, o Afeganistão sofreu uma intervenção militar, tendo como base o artigo 51 da Carta das Nações Unidas que possibilita o exercício da legítima defesa, reconhecido pelo Conselho de Segurança pela Resolução 1368 de 12 de setembro de 2001, uma vez que os norte-americanos entendiam que o governo Talibã estava protegendo os membros da Al Qaeda e Osama Bin Laden, chefe do grupo.
Em 2009, Barack Obama é eleito presidente dos Estados Unidos com um discurso apaziguador, oposto ao de Bush e crítico ao alto custo financeiro e humano que a guerra impunha aos cidadãos estadunidenses, o que não o impediu de seguir enviando tropas ao Afeganistão mesmo depois que Osama Bin Laden foi morto, em 2011, em uma operação das forças especiais norte-americanas no Paquistão. Somente no fim do seu governo, já em 2017, Obama iniciou uma retirada lenta das tropas sob seu controle do Afeganistão.
Já em 2020, Donald Trump assinou um tratado com o Talibã em que se comprometeu em retirar completamente as tropas sob o seu comando até o início de 2021. O plano sofreu um pequeno atraso em razão do resultado eleitoral dos EUA em 2020, no entanto, em abril de 2021, Joe Biden anunciou que seguiria com o plano de seu antecessor e retiraria todos os militares do solo afegão antes que a ocupação completasse 20 anos.
Em julho deste ano, o governo estadunidense informou que a retirada já estava quase 90% concluída e o Talibã havia avançado em pelo menos 30 distritos. “Embora algumas tropas adicionais ainda tenham que se retirar de outra base da capital, Cabul, na prática a partida de Bagram encerra a guerra mais longa da história norte-americana”, informou a CNN ao mundo, um mês antes do fatídico 15 de agosto.
Na opinião da Professora Patrícia, após 20 anos de ocupação militar americana, em algum momento o país deveria voltar para as mãos do povo afegão, no entanto, o erro dos Estados Unidos não foi “quando”, mas sim “como”. O modus operandi utilizado durante o período de ocupação fez com que a retirada trouxesse ainda maiores consequências aos civis. O deputado Michael McCaul, principal republicano no Comitê de Relações Exteriores da Câmara, nos Estados Unidos, disse que “ podemos debater quanto tempo ficaremos lá, mas minha crítica é a falta de planejamento e preparação para isso. Se você não planeja, planeja fracassar”.
O retorno do Talibã ao poder
Com a retirada das tropas norte-americanas o Talibã retorna ao poder, após mais de 20 anos de sua derrubada. O exército afegão não ofereceu nenhuma resistência, principalmente porque sempre esteve muito enfraquecido e o então presidente Ashraf Ghani fugiu afirmando que a sua atitude era para evitar um “banho de sangue”.
Ainda há muita especulação do que acontecerá tanto no cenário interno quanto externo. Especialistas estadunidenses falam em aumento de grupos terroristas fomentados pelo Talibã, mas para a Professora Patrícia, o principal objetivo do grupo é governar o Afeganistão de acordo com as suas convicções religiosas, que ocorre pela interpretação rígida da lei islâmica e não a promoção de ataques terroristas.
A seguir separamos os principais pontos levantados até o momento:
Direito das meninas e mulheres
As meninas e as mulheres são as que mais sofrem sob o comando dos fundamentalistas religiosos e se levarmos em consideração o período de 1996 a 2001, quando o Talibã governou o Afeganistão pela primeira vez, há muito o que temer.
Os principais receios estão relacionados ao fato de não poderem estudar, trabalhar e o uso obrigatório da burca. Até o momento, as comunicações oficiais do governo têm tentado manter um tom moderado. O porta-voz do Talibã, Suhail Shaheen, afirmou que as meninas poderão estudar. “As escolas serão abertas e as meninas e as mulheres irão para as escolas, como professoras, como alunas”.
O mesmo vale para as mulheres que estavam inseridas no mercado de trabalho. Enquanto o Talibã e o governo afegão apoiado pelos EUA estavam negociando a paz em 2020, trabalhadoras foram mortas em uma onda de ataques, incluindo três jornalistas. Agora, muitas mulheres com carreira, temem pelas suas vidas. O que se sabe, é que em nível nacional o Talibã permite que as mulheres trabalhem desde que o façam dentro de uma estrutura islâmica, mas como isso acontecerá nas províncias ainda é incerto.
Apoio da China
A China mantém conversas amistosas com o Talibã desde 2019. Os dois países dividem 76 quilômetros de fronteiras e contam com uma longa história de parceria, afinal, o governo chinês também apoiou os Mujahidin contra a URSS na guerra afegã soviética.
O porta-voz da diplomacia chinesa, Hua Chunying afirmou que a China “respeita o direito do povo afegão a decidir seu próprio destino e futuro e deseja seguir mantendo relações amistosas e de cooperação com o Afeganistão”, além de indicar que o Talibã também já havia sinalizado interesse em desenvolver boas relações com o vizinho.
O governo chinês afirmou que não apoia atos terroristas contra a população muçulmana em seu território e em contrapartida investirá na reconstrução da infraestrutura do Afeganistão que foi destruída após 20 anos de ocupação norte-americana.
A posição da China é bastante estratégica. Além de proteger a sua população, o país ainda abre caminho para as “Novas Rotas da Seda”, uma rede de infra-estrutura que ligará o continente asiático ao europeu.
A posição chinesa vai de encontro com algumas lideranças mundiais. O primeiro-ministro britânico Bóris Johnson disse que nenhum país deveria reconhecer o Talibã como novo governo afegão que esperava uma posição unida da comunidade internacional. Ursula Von Der Leyen, presidente da Comissão Europeia, também declarou que o bloco europeu não reconheceria o grupo como governo. Segundo ela, o único diálogo mantido diz respeito à necessidade de retirar as pessoas que desejam deixar o país para que elas consigam chegar até o aeroporto da capital, “mas isso é totalmente diferente de negociações políticas”.
Refugiados
Com uma história marcada por tantas guerras, o Afeganistão se tornou uma das maiores e mais antigas populações refugiadas do mundo. Cerca de 90% dos afegãos deslocados estão no Irã e Paquistão, países vizinhos. Não à toa, que antes de 15 de agosto, a ACNUR registrou a chegada de 200 refugiados afegãos na fronteira iraniana e desde o início do ano, ao menos 400 mil pessoas, sendo 80% mulheres e crianças, se deslocaram internamente, após os EUA anunciarem o plano para a retirada das tropas.
O governo iraniano instalou tendas nas províncias de fronteiras, mas informou que as acomodações são temporárias e que os afegãos serão repatriados assim que a situação política melhorasse. O motivo principal é a falta de condições econômicas do país, que estão ainda piores devido a situação da covid-19 e o pouco apoio internacional para lidar com esta crise humanitária.
Já na Europa, os afegãos são o maior grupo de requerentes de asilo e com os atuais acontecimentos, estima-se que os números venham a crescer, o que tem aumentado as tensões entre os governantes do continente europeu. A fronteira da Turquia com a Grécia é sempre um ponto de atenção. A Alemanha, que em 2015 recebeu boa parte dos refugiados sírios, mudou de postura e disse que não é capaz de resolver os problemas do mundo, no entanto, tem advogado para que o bloco europeu ofereça ajuda humanitária para que os países vizinhos do Afeganistão possam receber os refugiados.
Já a Áustria defende que os afegãos que tenham os seus pedidos de refúgio negados possam ser expulsos, para tanto, o ministro do interior, Karl Nehammer advogou pela criação de centros de deportação, uma proposta semelhante a um acordo firmado entre a UE e Turquia em 2016 para conter a crise migratória na região dos Bálcãs e que recebe inúmeras críticas das agências humanitárias.
O Ministro da Defesa Nacional de Portugal, João Gomes Cravinho, disse que o país trabalhará junto com a UE para avaliar as possibilidades de receber os refugiados afegãos e ajudar no que for possível. Em relação ao reconhecimento do Talibã com o governo, o posicionamento ainda foi bastante cauteloso como a situação atual pede.
As Nações Unidas também anunciaram um plano em conjunto com outras ONGs que apoiam atividades em seis países vizinhos ao Afeganistão e prevê, “no pior cenário”, a chegada de cerca de 500 mil novos refugiados na região. O orçamento estimado para até o momento é de 299 milhões de dólares e será dividido entre Irã, Paquistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Uzbequistão.
Uma guerra sem vencedores
Para Grazziotin a empreitada estadunidense em território afegão custou muito caro e trouxe pouco “retorno”. Foi a guerra mais longa que os Estados Unidos já participou e custou oficialmente 1 trilhão de dólares. Para ela, a decisão de invadir o Afeganistão foi equivocada, uma vez que a captura de Osama Bin Laden levou 10 anos e, da mesma maneira como aconteceu na guerra afegã soviética, não houve enfraquecimento dos grupos rebeldes, fazendo apenas com que o país mergulhasse ainda mais em crises de todos os tipos e impedindo que fosse uma nação livre.
Hoje, muitos e muitos anos depois, parece que não temos como não lembrar de Alexandre “O Grande” e concordar com ele, o Afeganistão é realmente um país muito difícil de sair. Será que com o fim da empreitada norte-americana o mundo ocidental finalmente aprende a sua lição e para de intervir naqueles países que eles julgam ser menos importantes ou menos desenvolvidos? Se desejamos uma sociedade intercultural devemos valorizar as diferenças de fato e isso vale, inclusive, para aquelas que são diametralmente opostas à nossa.
Sobre a autora: A Danielle é formada em Direito, no Brasil, e é membro do conselho de administração da cooperativa RPCI.
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